Fábrica de Arte Marcos Amaro

EXPOSIÇÃO / passada

Marcelo Moscheta: Rejeito

Marcelo Moscheta: Rejeito

Construtor de paisagens

Em 22 de abril de 2019, à(s) 07:21h, Miriam gomperts Gomperts escreveu:

Querido Mauro
Estou sentado num tronco de pines na floresta.
O cheiro de pines me sempre lembro de morangos. Uma borboleta branca é uma amarelo: nunca descansando. Pintar o ar com pequenos pontos volando.
Beijos e abraços firmes e com muito amor.

Portugal,

Marcelo Moscheta é um construtor de paisagens. Como artista é um polinizador do mundo. A arte tem que permitir a contemplação, senão não é arte. Por sua vez, artistas como Moscheta têm a responsabilidade de transformar a nossa forma ou maneira de ver o mundo, para o seu bem e existência. A arte deve provocar em nós o encantamento, o pensamento, a desconfiança e, inclusive, o estranhamento. Com se fosse uma maquete do mundo onde pudéssemos refletir, sentir e questionar tudo. Qual o nosso lugar no Universo? Qual o nosso lugar na paisagem do mundo? Para onde iremos daqui?

Miriam é holandesa, médica e artista. Como médica tem limitação para escrever em português, mas mesmo com essa limitação, como artista trás a beleza poética no que descreve, como neste breve texto de início. Constrói de alguma maneira uma paisagem idílica a sua frente, que só ela vê. Soa como um pequeno poema mal escrito ao nossos ouvidos se o lermos em voz alta. Mas descreve perfeitamente, mesmo com os erros, o momento da contemplação, através de palavras que soam tortas, embriagadas pelo ar pintado pelas borboletas. Era o que enxergava, ouvia e sentia com os cheiros diante de si. É o que se sente também ao ler suas palavras.

Ao contrário de Miriam e Marcelo Moscheta, este do qual vou comentar a paisagem interna criada para a Fábrica de Arte Marcos Amaro Museu e Campo mais adiante, os homens que se dizem civilizados são comedores das paisagens do mundo. Deveriam ser apenas como as abelhas, as borboletas, os pássaros e os insetos, polinizadores da paisagem. Mas não, esses homens optaram por devorar as paisagens existentes que nos abrigam. Todos viemos da mesma matéria, todos viemos da mãe Terra, da mãe Floresta. O jornalista Ailton Krenak, liderança espiritual indígena (no Ciclo de Estudos Selvagem, de 2019), fala sobre o desejo do homem em administrar a paisagem do mundo (os oceanos, as florestas, as montanhas) e ele aponta para esse desejo do homem de devorar a paisagem antes de conhece-la. É uma visão utilitária dos homens (gênero masculino e brancos) sobre o sistema da vida. Uma forma de pensar totalitária e distorcida de que o mundo deve ser utilitário. A arte é como uma fresta em que os botânicos, cientistas e artistas operam como facilitadores desses seres maravilhosos, é de onde observam essa existência natural ameaçada com a destruição dos valores desse sistema de conhecimento. Plantas mestres, plantas que ensinam e plantas seres inteligentes. A floresta, as árvores e suas folhas são o mundo dos significados, dos sentidos e do encanto da própria da vida.

“O Encanto”, por Moisés Piyãko, outra liderança espiritual Ashaninka, contava a história oral do seu povo (Ciclo de Estudos Selvagem, de 2018), os Ashaninka. Para o mundo espiritual deles, este livro é o universo e a criação do planeta, é o mundo que temos para contar e o mundo que não enxergamos. O mundo do Encanto é a energia que rege o mundo, que é a que rege todo o universo. O Inkiété, é o infinito, que nada mais é do que o nosso pensamento, a nossa capacidade de imaginar. A chave do conhecimento para esse povo estaria no cipó e nas folhas que foram chamados pelo espírito criador a levar o seu povo para o mundo “encantado”, o ciclo de vida. O de uma árvore, por exemplo, tem que ser garantido a existir plenamente, pois ela faz parte do ciclo de vida da Terra. A folha que cai, seca e se transforma novamente em pó, em partículas, é parte desse sistema de organismos e energias que regem a vida.

A arte tem disso, também, de nos transportar no tempo e nos fazer observar coisas e situações pequenas que passariam despercebidas para um olhar que não está mais acostumado a divagar. A invenção da natureza é uma maneira de contemplar e divagar esse mundo. O estranho pode surgir dessas situações simples provocadas pela arte da contemplação que encontramos nos gestos e ações das mais banais, da natureza e da criação dos artistas. Esses têm a responsabilidade, sim, de mudar nossa maneira de ver. É o que faz Marcelo Moscheta, com honestidade e na Intensidade mimética através de uma folha feita de argila, cópia do real e seca pelo tempo. Essas folhas são gravuras, folhas “copiadas” aos milhares por meio das matrizes que são feitas a partir das folhas e galhos recolhidos de árvores que dão sombra à Fábrica de Arte Marcos Amaro Museu e Campo. São a história secular da velha fábrica de tecidos que tanto desperta a nossa memória quando a adentramos, de um tempo passado na cidade de Itu.

Com interesse na observação da natureza, na arqueologia e na arquitetura das cidades, o gênero paisagem prevalece na obra de Marcelo Moscheta.

Como não fugir do que provoca esse trabalho que simula a natureza? Não tem como escapar dessa paisagem desolada que o artista nos apresenta em uma das salas do FAMA Museu e Campo. É duro pensar sobre o ciclo natural de vida e morte e talvez nem seja essa a intenção do artista, quando cria sua obra. Mas o trabalho de arte ao ser criado toma vida própria, como nós que ao nascer tomamos a vida pela frente, e como tudo na natureza, não tem como escapar de um destino final, a existência.

Somos apenas parte de um ciclo de vida e morte. Para tudo e todos há um ciclo evidente e muitas vezes imperceptível, mas implacável na passagem do tempo, de tão lenta que são as transformações. Mas tudo tem sempre um porquê, naquilo que tange a duração do tempo. Tudo tem um sentido, que nem sempre é aquele que intenciona o artista ao fazer ou propor o trabalho de arte. Muitos não querem causar desconforto, alguns querem trazer apenas algo bonito, que enche os olhos, outros querem propor a materialização de um pensamento que nos faz refletir. Tem aqueles que não querem nada disso. Tem outros que querem tudo.

Por isso há de se respeitar o sentido da criação. Mas tem trabalhos que fogem de tudo isso e de fato nos provocam esse sentimento da contemplação. O de refletir mesmo quando nos causa estranhamento e incômodo ao sabermos que trata do ciclo vital, viver e morrer. Pois o ser humano contemporâneo que se acha imortal foge do desconforto que causa o confronto, mesmo sabendo que tudo na natureza está em fluxo, “volando” como as borboletas que pintam o ar no poema inicial.

Vida e morte é o sentido da transformação do mundo. Somos partes de um ciclo da natureza de renovação e de constante transformação. Uma folha que brota cresce, fica verde e tem uma função de oxigenação do mundo, depois morre, seca e se transforma em insumo que realimenta a natureza e, novamente, brota. E assim se reinicia o ciclo e segue, eternamente, se não o interrompermos.

A matéria orgânica, como tudo sobre a face da Terra, transforma-se em terra e vai alimentar e se transformar em árvores ou animais e toda sorte da vida. Todos, inclusive aqueles que acreditam ser imortais e não fazer parte desse ciclo natural. Não faz o menor sentindo esse pensamento da imortalidade. Vida e morte, claro, são inexoráveis à condição terrestre.

Isso é dito para entendermos o estranhamento e a contradição de beleza proposto pelo trabalho de Marcelo Moscheta. Nos provoca e nos faz obrigatoriamente pensar sobre esse ciclo que rege o mundo, que rege o universo. Nascer, viver, morrer, brotar, florir, secar e virar sedimento terroso de retroalimentação da própria natureza.

Existe um fascínio em sua obra por entender “o engenho do mundo”, como diria o escritor Ítalo Calvino. Não é casual, portanto, que territórios, assim como os acervos, são a arqueologia do mundo, que por explorar – por entender – fazem parte do seu imaginário artístico. Moscheta narra de forma poética o que encontrou pelo chão da antiga Fabrica São Pedro de tecidos, com determinação e desejo de descobrir e conquistar a memória do lugar, das pessoas que por ali passaram dias e dias de suas vidas. Incontáveis como as folhas secas que se espalham e se amontoam pelo chão.

Moscheta, do interior paulista, nos propõe sempre com sua obra ver o mundo segundo a ótica da classificação das coisas, seja das mais banais como as folhas que caem das árvores, que com o gesto de amontoar folhas de argila mimetizam as folhas secas pelo tempo. Feitas de paper clay, uma mistura de argila com fibra de celulose, que dá uma materialidade e plasticidade uniformes, com flexibilidade, conferindo maleabilidade e integridade. Se transformam em objetos arqueológicos, frágeis. Está no limite da temporalidade, assim como está a fragilidade do fio que faz a vida, perpetuado nesse monte de folhas de argila secas. Da mesma forma que os objetos arqueológicos, frágeis como a vida, este é um trabalho melancólico e aflitivo, justamente por falar de vida e por também falar da vida no fim, como a folha caída de uma arvore que seca no tempo.

Nos primeiros meses do ano, o artista montou um ateliê pouco convencional em um dos galpões do Museu. Fez uma outra fábrica dentro da antiga fábrica, que contou com a ajuda de uma equipe de artistas jovens para fazer dessa iniciativa um trabalho participativo e criar ali uma produção em série dessas gravuras sobre argila de folhas e galhos coletados pelo chão da velha fábrica.

As folhas são as matrizes, as mães de todas as outras impressas sobre argila, moldadas e catalogadas. Resultam numa profusão de outras folhas “mortas” como um resto, um amontoado de corpos sem vida. Criou no ateliê e depois na sala expositiva a ideia de um ambiente arqueológico.

Para Moscheta, trata-se simplesmente de um desejo de artista, experimentado na infância, de organizar as coisas e entender o mundo.  Em sua própria definição “o artista é alguém que se propõe a renomear as coisas e as relações que existem ao nosso redor, segundo outros critérios que não os da natureza e da cultura já preestabelecida”. Oferece ao observador o poder de habitar sua paisagem inventada, segundo sua própria presença e imaginação, recriando e simulando com o acervo da instituição.

Recolheu folhas e galhos caídos das árvores que sombreiam a Fábrica de Arte Marcos Amaro, como se fosse organizar uma catalogação, como se quisesse também, em um processo arqueológico registrar a flora do lugar, uma velha fábrica de tecidos, abandonada pelo tempo que agora passa por revitalização.

De alguma maneira fala de memória, da marcação do tempo nas estações do ano. Folhas caem em abundância no outono. Caem, secam, as árvores ficam desfolhadas, vem o inverno e os raios do sol passam com mais facilidade por entre os galhos. Voltam a esverdear-se na primavera para dar as sombras do verão. De novo caem, desaparecem, para deixarem os raios do sol atravessar mais uma vez do que restou das árvores, que agora a pouco na primavera e verão eram frondosas.

O silêncio paira sobre essa instalação de Moscheta, o tempo não. Mas o silêncio se ouve quando se quer o infinitamente vivo. “O silencio é o professor da vida”, continua ainda a liderança indígena com suas palavras a ressoar nessa paisagem construída por Marcelo Moscheta.

Ricardo Resende

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